domingo, 1 de setembro de 2019

Irlandas - somente Belfast


Dia 7 (Belfast -  Malahide Castle - Dublin)

Os dois lados de Belfast:
- o neutro, de mãos dadas com qualquer outra cidade europeia, “sem muros nem ameias”;

- o político, o da cidade parada no tempo à espera de ultrapassar o trauma de uma guerra que matou mais de 3.600 pessoas, trauma que parece adormecido desde 1998.

No primeiro, uma volta rápida para ver, de dia, alguns pontos estratégicos:









City hall, um edifício estupendo por dentro e por fora, cheio de salas com exposições sobre a cidade e o país.


No segundo, tudo muda de figura. Trata-se de uma outra Belfast onde ainda hoje os muros da discórdia e separação existem.
Para chegar lá há quem aconselhe os táxis pretos, numa espécie de visita guiada com taxistas locais. Como tínhamos carro e GPS, decidimos ir por conta própria.
A primeira paragem em Cuper Way deixa-nos a pensar se aquilo ali está apenas como marco histórico, onde todos vão para deixar a sua marca, e pronto, o dia a dia continua, para lá do muro a vidinha normal, para cá bem obrigada, tudo idêntico de um lado e de outro, o muro não caiu, convém lembrar o passado.

É o chamado Muro da Paz, uma massa alta de tijolos, cerca de 7 metros de altura.




Muro da Paz

(Ou o muro continua a fermentar por entre ossos de tijolos, escorrendo invisivelmente uma seiva apenas adormecida?).


Vi-o continuar (um total de 30 quilómetros?) até aos altos portões que terminam em arame farpado, portões que afinal se fechem e abrem, porque afinal há dois lados e de cada um deles as diferenças mantêm-se. A partir deste ponto não se trata só de assinar o muro da Paz e partir de consciência tranquila, a partir deste ponto é como um murro no estômago de tão real e tão dentro da História passado-presente em que nos encontramos.





(O muro continua a fermentar por entre ossos de tijolos, escorrendo invisivelmente uma seiva apenas adormecida).


O mur(r)o atinge-nos de frente quando somos abordados por um transeunte que nos faz uma visita guiada a partir do Jardim da Memória e nos leva para o centro da zona católica, onde a ferida ainda dói.



Jardim da Memória – altar ao ar livre dedicado aos católicos mortos durante os conflitos.

O guia conduz-nos a um pequeno museu – Irish Republican  History Museum - que reconstitui uma cela da prisão de Armagh onde a  jovem Eileen Hickley, fundadora do museu, esteve presa. É a sua irmã quem nos recebe e nos mostra alguns artefactos e fotos, memórias de mortes e de uma luta que é de ontem e de sempre.


Irish Republican  History Museum

Sim, de sempre, porque enquanto o “guia” nos leva cada vez mais para o interior do bairro católico (muitas ruas fecham-se em si mesmas contra o muro, e algumas vezes, entre ele e as casas, os quintais erguem redes em defesa das bombas e cocktails molotovs que poderão vir do outro lado), para Bombay Street ”, o dia em que tudo ardeu, no ano de 1969 , temos a certeza que nada daquilo é passado. Nas palavras apaixonadas do guia, tudo soa a realidade, tudo é ontem e hoje, podendo ser amanhã, daqui a nada.








Monumento em Bombay Street, em memória daqueles que morreram – esta rua foi cenário real dos conflitos, todas as casas arderam, queimadas por protestantes.

E não sei como senti-me envergonhada, demasiado vestida, por não saber o que é uma arma, uma bala, uma luta contra o próximo, aqui, neste cantinho à beira-mar plantado, onde a revolução se fez com cravos a brotar de espingardas. Aquele era o lado católico.

Tivéssemos sido abordados por alguém do lado protestante, a sensação seria igual. Um outro guia debitando locais de mortes, nomes de mortos, mais jovens mortos, que jovens eram, ali, de balas trespassados.





Murais do bairro protestante, homenagens a antigos feitos e heróis britânicos.

Passámos apenas de carro pela Shankill Road, a avenida “protestante”, um grito inconfundível p´la monarquia inglesa, como o mostravam as bandeiras voando ao vento.



Shankill Road

O guia deixa-nos no ponto onde nos tinha encontrado, frente ao Jardim da Memória, depois da esquina onde Bobby Sands é recordado, no mural em sua memória. O guia ativa o telemóvel e ouvimos “All things must come to pass as one/ So hope should neber dye…”



Mural dedicado a Bobby Sands, o Che Guevara irlandês, falecido em 1981, durante uma greve de fome.

Tal como apareceu, o guia do IRA desapareceu, deixando-nos na dúvida se devíamos pagar a visita, agradecer, pedir perdão, rir ou chorar… deixando-nos na dúvida se o chefe do IRA era ou não “that man in blue over there”, um homem como tantos outros, que atravessava a rua, mesmo em frente à sede do Sínn Féin.

Continuámos. O guia, os do lado de cá, os do lado de lá ficaram a lembrar as suas feridas e os seus mortos, uns de um lado, outros do outro, com um portão que os separa e os fecha depois das 19 horas, de um lado pessoas, do outro… pessoas.

Apesar da estrada ter continuado até Dublin, por ora, não há mais linhas, não há mais palavras.

O muro continua a fermentar por entre ossos de tijolos, escorrendo invisivelmente uma seiva apenas adormecida.


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