Dia 7 (Belfast
- Malahide Castle - Dublin)
Os dois lados de
Belfast:
- o neutro, de mãos
dadas com qualquer outra cidade europeia, “sem muros nem ameias”;
- o político, o da
cidade parada no tempo à espera de ultrapassar o trauma de uma guerra que matou
mais de 3.600 pessoas, trauma que parece adormecido desde 1998.
No primeiro, uma volta
rápida para ver, de dia, alguns pontos estratégicos:
City hall, um edifício
estupendo por dentro e por fora, cheio de salas com exposições sobre a cidade e
o país.
No segundo, tudo muda
de figura. Trata-se de uma outra Belfast onde ainda hoje os muros da discórdia
e separação existem.
Para chegar lá há quem
aconselhe os táxis pretos, numa espécie de visita guiada com taxistas locais.
Como tínhamos carro e GPS, decidimos ir por conta própria.
A primeira paragem em
Cuper Way deixa-nos a pensar se aquilo ali está apenas como marco histórico,
onde todos vão para deixar a sua marca, e pronto, o dia a dia continua, para lá
do muro a vidinha normal, para cá bem obrigada, tudo idêntico de um lado e de
outro, o muro não caiu, convém lembrar o passado.
É o chamado Muro da
Paz, uma massa alta de tijolos, cerca de 7 metros de altura.
(Ou o muro continua a fermentar por entre ossos de tijolos, escorrendo invisivelmente uma seiva apenas adormecida?).
Vi-o continuar (um
total de 30 quilómetros?) até aos altos portões que terminam em arame farpado, portões
que afinal se fechem e abrem, porque afinal há dois lados e de cada um deles as
diferenças mantêm-se. A partir deste ponto não se trata só de assinar o muro da
Paz e partir de consciência tranquila, a partir deste ponto é como um murro no
estômago de tão real e tão dentro da História passado-presente em que nos
encontramos.
(O muro continua a
fermentar por entre ossos de tijolos, escorrendo invisivelmente uma seiva
apenas adormecida).
O mur(r)o atinge-nos
de frente quando somos abordados por um transeunte que nos faz uma visita
guiada a partir do Jardim da Memória e nos leva para o centro da zona católica,
onde a ferida ainda dói.
Jardim da Memória –
altar ao ar livre dedicado aos católicos mortos durante os conflitos.
O guia conduz-nos a um
pequeno museu – Irish Republican History
Museum - que reconstitui uma cela da prisão de Armagh onde a jovem Eileen Hickley, fundadora do museu,
esteve presa. É a sua irmã quem nos recebe e nos mostra alguns artefactos e fotos,
memórias de mortes e de uma luta que é de ontem e de sempre.
Sim, de sempre, porque
enquanto o “guia” nos leva cada vez mais para o interior do bairro católico
(muitas ruas fecham-se em si mesmas contra o muro, e algumas vezes, entre ele e
as casas, os quintais erguem redes em defesa das bombas e cocktails molotovs
que poderão vir do outro lado), para Bombay Street ”, o dia em que tudo
ardeu, no ano de 1969 , temos a certeza que nada daquilo é passado. Nas palavras
apaixonadas do guia, tudo soa a realidade, tudo é ontem e hoje, podendo ser
amanhã, daqui a nada.
Monumento em Bombay
Street, em memória daqueles que morreram – esta rua foi cenário real dos
conflitos, todas as casas arderam, queimadas por protestantes.
E não sei como
senti-me envergonhada, demasiado vestida, por não saber o que é uma arma, uma
bala, uma luta contra o próximo, aqui, neste cantinho à beira-mar plantado,
onde a revolução se fez com cravos a brotar de espingardas. Aquele era o lado
católico.
Tivéssemos sido
abordados por alguém do lado protestante, a sensação seria igual. Um outro guia
debitando locais de mortes, nomes de mortos, mais jovens mortos, que jovens
eram, ali, de balas trespassados.
Murais do bairro protestante, homenagens a antigos feitos e heróis britânicos.
Passámos apenas de
carro pela Shankill Road, a avenida “protestante”,
um grito inconfundível p´la monarquia inglesa, como o mostravam as bandeiras
voando ao vento.
O guia deixa-nos no
ponto onde nos tinha encontrado, frente ao Jardim da Memória, depois da esquina
onde Bobby Sands é recordado, no mural em sua memória. O guia ativa o telemóvel
e ouvimos “All things must come to pass as one/ So hope should neber dye…”
Mural dedicado a Bobby
Sands, o Che Guevara irlandês, falecido em 1981, durante uma greve de fome.
Tal como apareceu, o guia
do IRA desapareceu, deixando-nos na dúvida se devíamos pagar a visita,
agradecer, pedir perdão, rir ou chorar… deixando-nos na dúvida se o chefe do
IRA era ou não “that man in blue over there”, um homem como tantos outros, que
atravessava a rua, mesmo em frente à sede do Sínn Féin.
Continuámos. O guia,
os do lado de cá, os do lado de lá ficaram a lembrar as suas feridas e os seus
mortos, uns de um lado, outros do outro, com um portão que os separa e os fecha
depois das 19 horas, de um lado pessoas, do outro… pessoas.
Apesar da estrada ter
continuado até Dublin, por ora, não há mais linhas, não há mais palavras.
O muro continua a
fermentar por entre ossos de tijolos, escorrendo invisivelmente uma seiva
apenas adormecida.
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