Há surpresas agradáveis, ou alegres coincidências, ou
ignorâncias que levam às surpresas agradáveis.
Passo a explicar: não saber o que é, em termos culturais, na
vida da capital portuguesa, a Fábrica do Braço de Prata, é provavelmente digno
de uma certa dose de ignorância. Mea culpa! Felizmente, a coincidência
de ser lá o espaço para a primeira (e, até ao momento, única) área para
autocaravanas na capital, tornou-me menos ignorante.
As redes sociais às vezes proporcionam oportunidades de fazer
amigos virtuais que um dia se tornam carne e osso e nos dizem “queres vir ao
encontro Hymer, pois anda lá que serás bem recebida com ou sem Hymer, a porta
está aberta, é só pôr mais caldo na sopa”. Não foi bem assim a conversa, mas
para o efeito resultou, uma coisa levou à outra, lá fomos nós e lá conhecemos a
dita Fábrica que antes foi palco de guerra e agora é palco para as artes e… lá vem agora a coincidência, a fábrica, agora também ASA,
tem ao leme um antigo professor meu, ainda por cima daqueles que não se
esquecem, pela forma apaixonada e cativante como lecionava.
O professor
O resto da história foi conhecer o espaço e entrar no baile
cujo mote que guiava o passeio era “À descoberta do azulejo em Portugal”.
As AC lá ficaram bem guardadas por um alto muro, não um
qualquer, mas um daqueles que falam através de mensagens;
ao fundo um
jardim/bar improvisado com palettes e animação (bem, lá para as noites
de sexta e sábado a animação pode atingir alguns decibéis que não se coadunem
com quem quer fechar as cortinas dos olhos…), mas há sempre a possibilidade de
entrar no velho casarão e curtir outros concertos, o cardápio é sempre variado
e estava incluído no preço.
O velho casarão era a antiga administração da
fábrica portuguesa que produzia material de guerra, nos tempos áureos do
colonialismo. Depois de votada ao abandono, foi stand de vendas de
apartamentos de luxo, foi quase colégio, foi livraria, foi quase cinzas, para
desde 2007 ser aquilo que é hoje, no meio de muitas aventuras e idas a tribunal.
Dizem eles, na sua página na web, “ não se sabe muito bem o que a fábrica é”, é
um não sei quê, digo eu, de murais, de
livrarias novas e usadas, de bares e restaurantes, de salas batizadas com nomes
de filósofos (o dedo inspirador do professor); de espetáculos a decorrer em
simultâneo, um jazz aqui, um fado ali, uma bossa nova acolá; teatro,
performances, a lendária Guida Scarlatti num cantinho do último piso e ainda
uma escola de jazz e tempos livres e gente jovem com ar feliz.
Está na hora de sair pelo largo portão e dar um salto ali à
vizinha Marvila, a visitar Santo Agostinho e a sua igreja paroquial, só porque
era este encontro, doutra forma seria mais difícil.
Lá se abriram as portas da
igreja que fazia arte do antigo convento de Nª Srª da Conceição, sede da Ordem
das Brígidas. Uma pérola do barroco com o peso da talha dourada e dos painéis
de azulejos que por lá sobrevivem. E tudo num livro aberto (em quadros como se
fora BD) sobre a vida de S. Agostinho, e da Santa sueca, a Brígida que tanto
lutou pela formação da sua ordem, conseguindo atravessar fronteiras e ter sede
em Lisboa.
Deste lado de cá confessavam-se as freiras da Ordem das Brígidas, o retângulo era uma parede fechada.
tela amovível
Fascinante o episódio , retratado num dos quadros que já viu melhores
dias, que mostra o santo no seu encontro
com uma criança que queria meter a água do mar dentro dum buraco que ia
escavando. O santo lá lhe explicou que o mar ali não caberia, mas o inocente
soube-lhe retorquir que também ele, Santo, procurava Deus e este era infinito.
Dali continuámos para o Museu do Azulejo, como não podia
deixar de ser. Um convento imenso, com um espólio variadíssimo desde o séc.
XV à contemporaneidade, a ocupar três pisos, e ainda a maravilhosa igreja da
Madre de Deus, mais uma pérola do barroco português.
Igreja da Madre de Deus
A visita aos motivos azuis e brancos não ficaria por aqui.
Quantos dias durou, perguntam? Pois apenas um, foi um sábado rico com o mesmo mote, mas sempre em conjuntos históricos diferentes.
O último foi o Mosteiro de S.
Vicente de Fora, o padroeiro de Lisboa. O seu fundador foi o primeiro rei de
Portugal, em honra do padroeiro, pelo sucesso da conquista de Lisboa aos
mouros.
Depois de muitos anos de abandono, Filipe I de Portugal, 2º
de Espanha, não querendo ficar atrás do pai da nação, tornou-o o símbolo do seu
poderio.
Entre claustros austeros, salas, corredores e escadarias, a
azulejaria voltou a ser a protagonista do nosso passeio. Até La Fontaine lá
está presente, contando fábulas em azulejos.
Sto. António professou em S. Vicente de Fora
Só o ar pesado do Panteão dos Reis da Dinastia de Bragança
corta o colorido azul e branco para, depois de subir ao terraço, se ter a
cereja no topo do bolo, uma paisagem deslumbrante, na qual o Tejo é agora a
personagem principal. E também Lisboa e os seus telhados, o Castelo espreitando
ao longe, o Cristo Rei olhando da margem sul, os hotéis flutuantes mesmo ali ao
lado, a rivalizarem em altura.
Panteão: a dor
Vistas do terraço
O mote azulejos fechava-se ao final da tarde, para ser
substituído pelo mote dos graffitis, outra vez na Fábrica, saboreando o
convívio salutar e um suculento bacalhau com brindes ao alto a algumas aniversariantes
autocaravanistas.
Domingo foi dia de mais champagne para inaugurar a
ASA e foi dia de aula de história com o professor de filosofia. A história da
fábrica, palco de guerras passadas e atuais e a razão de estarmos ali, de
termos estacionado e dormido e passeado. Mediante 15 € (dia) far-se-á a festa de
agora em diante, as más línguas, li, dizem que é caro, mas a cultura sem
subsídios é assim mesmo, se a uns enche a alma, a outros terá de encher o
corpo.
Os meus agradecimentos a Nuno Nabais e a todos os que com ele
lutam com palavras, gestos, sinais, cores; à Isabel Mesquita pelo empurrãozinho;
ao Clube Hymer pelo encontro e sua temática; à Zeza por se lembrar destes
viajantes de casas às costas.
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